domingo, 25 de outubro de 2009

Primeiro Capítulo

Aí vai o primeiro capítulo. Curta esse tira-gosto:


Mensagem Urgente


A chuva fina e o vento gelado deixavam as ruas, nas proximidades do Malevolato, inteiramente desertas. Encolhido dentro da sua capa preta, Damião espreitava o Palácio dos Ímpios, há horas. As luzes vermelhas da Sala das Grandes Conspirações, no segundo andar, permaneciam acessas. O rapaz, apreensivo, acompanhava aquela movimentação atípica no centro administrativo das Regiões Infernais. Não era difícil deduzir o que significava uma reunião dos temidos e poderosos malévolos avançando noite adentro: alguma decisão aterrorizante estava para ser tomada.
Já eram 3 horas da manhã, quando o pesado portão de ferro se abriu e um homem de baixa estatura disparou pela noite fria, uma capa vermelha esvoaçando nas costas e um chapéu de aba curta na cabeça. Damião recuou alguns passos para garantir que não seria visto e conseguiu dar uma boa olhada na pessoa que cruzou a rua correndo. Logo reconheceu o escudo no chapéu e percebeu a bolsa de couro com a alça cruzada no peito. Não era um homem adulto que corria pelas ruas escuras. Era um menino pertencente à Brigada dos Escolhidos, a organização formada por jovens de 13 a 17 anos que haviam se distinguido com graus superiores a 320 no teste de QM – coeficiente de maldade – obrigatório para todos os meninos da Cidade Alta no ano em que completavam o 13º aniversário.
A tarja vermelha na bolsa que o garoto carregava, indicava que o motivo de tamanha correria era uma entrega urgente. Os mais novos da Brigada exerciam a função de mensageiro particular dos malévolos. Damião apressou-se. Precisava seguir o menino para saber porque essa mensagem era tão urgente a ponto de ser entregue no meio da noite. Pelo caminho que o pequeno mensageiro escolheu, não foi difícil entender que ele se encaminhava para a garagem dos Correios. De acordo com o tipo de veículo que o mensageiro escolhesse para a entrega, talvez desse para deduzir que rumo ele pretendia tomar.
Em poucos minutos, uma pequena moto de 125 cilindradas, com pneus off road desproporcionalmente robustos para a máquina, deixou a garagem. Damião estremeceu ao perceber o destinatário da mensagem. Não havia dúvida que aqueles pneus atravessariam a Floresta das Sombras, fora dos limites da Cidade Alta. A Floresta levava ao castelo de Teodor Brudja, o poderoso vampiro que se tornara um ermitão. Os malévolos não se comunicavam com os vampiros há quase cem anos, em função de sérios desentendimentos. Alguma coisa muito importante estava sendo tramada naquela madrugada fria. Era preciso agir rápido.
A motocicleta parou a poucos metros da garagem, com a finalidade do jovem piloto trocar a capa de mensageiro por um grosso casaco de couro apropriado para enfrentar as baixas temperaturas da Floresta. Damião percebeu que não podia vacilar e, rapidamente, segurou a pistola de dardos paralisantes que trazia enfiada na cintura. Olhou em redor, avaliando a possibilidade de agir imediatamente. A impressão era de que só havia a escuridão da noite e o barulho incessante da chuva. Mas ele conhecia os olhos invisíveis da Patrulha da Madrugada, apesar de não possuir mais os sentidos que o fariam reconhecê-la em qualquer beco. Mesmo assim, ainda era reconfortante sentir que há muito tempo deixara de fazer parte do horripilante Mundo das Trevas. Retirou a mão da pistola, consciente de que não poderia agir dentro da Cidade Alta. Restava-lhe recorrer a única arma que não deixara para trás na ocasião da sua fuga e que, certamente, carregaria para sempre: a memória.
Damião lembrava-se perfeitamente de todos os caminhos possíveis nas proximidades da região administrativa, onde se especializara no curso de Indução aos Sete Pecados Capitais e se tornara um proeminente agente da CIMA – a Central de Inteligência Maligna -, na sua renegada época de anjo caído. Agora, redimido e trabalhando para o seu retorno ao mundo da luz, sabia que tinha a cabeça a prêmio e não subestimava a crueldade infinita do inimigo. Ele conhecia todas os recursos e os revia em pesadelos quase todas as noites. Só mesmo a memória que guardara de seus dias negros poderia ajudá-lo a interceptar o mensageiro e conseguir a valiosa informação que viera buscar. Estava disposto a trilhar novamente todas aquelas passagens imundas na tentativa de descobrir o que os malévolos estavam tramando.
O ronco do motor acelerando apressou a decisão do rapaz. Sempre se esquivando de sombra em sombra, as costas grudadas em muros e fachadas diversas, olhos vigilantes, ouvidos atentos, Damião foi deixando a cidade e embrenhando-se na periferia quase despovoada, beirando a região dos pântanos. Daquele ponto em diante passou a correr em direção ao atalho que lhe possibilitaria surpreender o mensageiro na entrada da Floresta das Sombras. A caminhada era árdua, entre pedras e uma água malcheirosa que corria em dezenas de filetes negros. Árvores secas e retorcidas abrigavam pássaros agourentos com olhos famintos. Cada farfalhar de asas soava como uma ameaça. Damião afugentou-os com a luz de uma lanterna especialmente fabricada para desnorteá-los que se mostrou extremamente eficaz: os pássaros acabavam colidindo uns com os outros e perdendo inteiramente o rumo. Obrigado, professor Omã – agradeceu em pensamento, lembrando-se do fantástico cientista e inventor. Em outros tempos, uma máquina de alta tecnologia desenvolvida pelo professor fora decisiva para avaliar seu arrependimento incondicional, prova indispensável para o duro processo de retorno ao Mundo Pré-Celestial – o Superior Instituto Preparatório para Ascensão Angelical -, passagem obrigatória para conseguir reaver sua posição no Mundo dos Anjos. Atualmente, era um experiente agente do Bem que se redimia do passado em arriscadas missões de espionagem.
Uns vinte minutos depois, chegou, arfando, exausto da corrida pelo atalho acidentado. O chão estava seco, a chuva não chegara até a Floresta. Caminhou um pouco até ouvir o ronco da motocicleta se aproximando. Procurou uma posição favorável e destravou a pistola. No exato momento em que o mensageiro passava, o dardo paralisante atingiu o lado direito do seu pescoço, provocando uma queda. A motocicleta, sem piloto, desacelerou ziguezagueando até trombar com uma árvore.
Damião correu até o menino que conservava as pernas encolhidas e os braços parcialmente esticados, como se ainda estivesse sobre a moto. A bolsa a tiracolo estava caída de lado, sobre as folhas ressecadas. O rapaz desafivelou a bolsa e retirou dois envelopes pretos idênticos. Os destinatários estavam subscritos pelo mesmo bico de pena e a caligrafia era firme e sem floreios. Damião reconheceu o traçado grosso da pena das hárpias, e, pelo tom vivo do vermelho das letras, deduziu que o sangue de algum animal fora colhido recentemente para abastecer os tinteiros do Malevolato. Virou um dos envelopes e percebeu o lacre com o brasão dos malévolos – uma corda escarlate com três voltas distribuídas como se formassem um trevo, que nada mais era do que uma representação plástica de três números 6 entrelaçados. Lacre idêntico fechava o outro envelope. Com um canivete e muita habilidade, retirou as duas mensagens sem danificar os lacres. Abriu-as sobre as folhas secas e leu o que estava escrito. Um forte arrepio percorreu todo seu corpo. Foi preciso muito controle para segurar uma minúscula câmera que retirou do bolso, fotografar os textos e, depois, os envelopes com seus destinatários. Recolocou as cartas nos envelopes e lacrou-os novamente com perfeição.
Em poucos minutos, o mensageiro estava sobre a moto que se equilibrava em um grosso tronco. A bolsa a tiracolo com sua fivela fechada, guardava as duas mensagens intactas. Damião certificou-se de que tudo estava em ordem e retirou o dardo. Imediatamente o pequeno orifício vermelho no pescoço do menino se fechou. Em três minutos ele recobraria a consciência e os movimentos. Certamente levaria um grande susto, mas nunca relataria o estranho acontecimento aos malévolos por conhecer seus horrendos castigos. Mesmo atordoado, sem entender o que havia acontecido, acabaria seguindo o seu caminho.
Agora, Damião refaria o trajeto até alcançar o litoral. Escondido, aguardaria a hora da maré baixa para não ser surpreendido pela fúria do Oceano Invisível que com suas ondas gigantescas varreriam a costa. O rapaz ainda se lembrava do rumor crescente das águas que ninguém conseguia ver, mas provocava pânico em quem ouvia a sua estrondosa aproximação. Esperava conseguir atravessar pela base das dunas negras e, entre tantas outras, reconhecer a única rocha por onde era possível escapar. Sabia o quanto era importante que as informações em seu poder chegassem às pessoas certas. Elas precisavam saber.

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