segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

de 29/11 a 7/12 ( wmf martins fontes)


sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Muitas mensagens foram postadas no meu e-mail sobre o mesmo assunto: o link na imagem do marketing eletrônico não está funcionado. Seguem abaixo os três primeiros capítulos do livro, que é o material que vocês não estão conseguindo acessar. Nas livrarias, o folder do livro também traz esses mesmos capítulos - 20 páginas -, uma amostragem bem generosa da história.
bjs,
Cristina

PARTE I



MENSAGEM URGENTE



A chuva fina e o vento gelado deixavam as ruas, nas proximidades
do Malevolato, inteiramente desertas. Encolhido dentro da sua capa
preta, Damião espreitava o Palácio dos Ímpios havia horas.
As luzes vermelhas da Sala das Grandes Conspirações,
no segundo andar, permaneciam acesas. O rapaz,
apreensivo, acompanhava aquela movimentação atípica
no centro administrativo das Regiões Infernais.Não era
difícil deduzir o que significava uma reunião dos temidos e
poderosos malévolos avançando noite adentro: alguma decisão
aterrorizante estava para ser tomada.
Já eram três horas da manhã, quando o pesado portão de
ferro se abriu e um homem de baixa estatura disparou pela
noite fria, com uma capa vermelha esvoaçando nas costas e
um chapéu de aba curta na cabeça. Damião recuou alguns
passos para garantir que não seria visto e conseguiu dar uma
boa olhada na pessoa que cruzara a rua correndo. Logo reconheceu
o escudo no chapéu e percebeu a bolsa de couro
com a alça cruzada no peito.Não era um homem adulto que
corria pelas ruas escuras. Era um menino pertencente à Brigada
dos Eleitos, organização formada por jovens de 13 a 17
anos que haviam se distinguido com graus superiores a 320
no teste de CM – Coeficiente de Maldade – obrigatório para
todos os meninos da Cidade Alta no ano em que completavam
o 13º aniversário.
A tarja vermelha na bolsa que o garoto carregava indicava
que o motivo de tamanha correria era uma entrega urgente.
Os mais novos da Brigada exerciam a função de mensageiros
particulares dos malévolos. Damião apressou-se. Precisava
seguir o menino para saber por que a mensagem era tão urgente
a ponto de ser entregue no meio da noite. Pelo caminho
que o pequeno mensageiro escolheu, não foi difícil
entender que ele se encaminhava para a garagem dos Correios.
De acordo com o tipo de veículo que o mensageiro escolhesse
para a entrega, talvez desse para deduzir que rumo
ele pretendia tomar.
Em poucos minutos, uma pequena moto de 125 cilindradas,
Com pneus off-road desproporcionalmente robustos para
a máquina, deixou a garagem.Damião estremeceu ao perceber
o destinatário da mensagem. Não havia dúvida de que
aqueles pneus atravessariam a Floresta das Sombras, fora dos
limites da Cidade Alta. A Floresta levava ao castelo deTeodor
Brudja, o poderoso vampiro que se tornara ermitão. Os malévolos
não se comunicavam com os vampiros havia quase
cem anos, em função de sérios desentendimentos. Alguma
coisa muito importante estava sendo tramada naquela madrugada
fria. Era preciso agir rápido.
A motocicleta parou a poucos metros da garagem para
que o jovem piloto trocasse a capa de mensageiro por um
grosso casaco de couro apropriado para enfrentar as baixas
temperaturas da Floresta. Damião percebeu que não podia
vacilar e, rapidamente, segurou a pistola de dardos paralisantes
que trazia enfiada na cintura. Olhou em redor, avaliando
a possibilidade de agir imediatamente. A impressão
era a de que só havia a escuridão da noite e o barulho incessante
da chuva. Mas ele conhecia os olhos invisíveis da Patrulha
da Madrugada, apesar de já não possuir os sentidos
que o fariam reconhecê-la em qualquer beco.Mesmo assim,
ainda era reconfortante sentir que havia muito tempo deixara
de fazer parte do horripilante Mundo das Trevas. Retirou
a mão da pistola, consciente de que não poderia agir dentro
da Cidade Alta. Restava-lhe recorrer à única arma que não
deixara para trás na ocasião da sua fuga e que, certamente,
carregaria para sempre: a memória.
Damião lembrava-se perfeitamente de todos os caminhos
possíveis nas proximidades da região administrativa, onde se
especializara no curso de Indução aos Sete Pecados Capitais
e se tornara um proeminente agente da CIMA – a Central de
Inteligência Maligna –, na sua renegada época de anjo caído.
Agora, redimido e trabalhando para o seu retorno ao mundo
da luz, sabia que tinha a cabeça a prêmio e não subestimava
a crueldade infinita do inimigo. Ele conhecia todos os recursos
e os revia em pesadelos quase todas as noites. Só mesmo
a memória que guardara de seus dias negros poderia ajudá-
-lo a interceptar o mensageiro e conseguir a valiosa informação
que viera buscar. Estava disposto a trilhar novamente
todas aquelas passagens imundas na tentativa de descobrir o
que os malévolos estavam tramando.
O ronco do motor acelerando apressou a decisão do rapaz.
Sempre se esquivando de sombra em sombra, as costas grudadas
Em muros e fachadas diversas, olhos vigilantes, ouvidos
atentos, Damião foi deixando a cidade e embrenhando-se em
áreas quase despovoadas, beirando a região dos pântanos.
Daquele ponto em diante passou a correr em direção ao atalho
que lhe possibilitaria surpreender o mensageiro na entrada
da Floresta das Sombras. A caminhada era árdua, entre
pedras e uma água malcheirosa que corria em dezenas de filetes
negros. Árvores secas e retorcidas abrigavam pássaros
agourentos com olhos famintos. Cada farfalhar de asas soava
como uma ameaça. Damião afugentou-os com a luz de uma
lanterna especialmente fabricada para desnorteá-los, que se
mostrou extremamente eficaz: os pássaros acabavam colidindo
uns com os outros e perdendo inteiramente o rumo.
“Obrigado, professor Omã”, agradeceu em pensamento, lembrando-
se do fantástico cientista e inventor. Em outros tempos,
uma máquina de alta tecnologia desenvolvida pelo
professor fora decisiva para avaliar seu arrependimento
incondicional, prova indispensável para o duro processo de
retorno ao Mundo Pré-Celestial – o Superior Instituto Preparatório
para Ascensão Angelical –, passagem obrigatória para
conseguir reaver sua posição no Mundo dos Anjos. Atualmente,
era um experiente agente do Bem que se redimia do
passado em arriscadas missões de espionagem.
Uns vinte minutos depois, chegou, arfando, exausto da corrida
pelo atalho acidentado. O chão estava seco, a chuva não
chegara até a Floresta. Caminhou um pouco até ouvir o ronco
da motocicleta se aproximando. Procurou uma posição favorável
e destravou a pistola.No exato momento em que o mensageiro
passava, o dardo paralisante atingiu o lado direito do
seu pescoço, provocando sua queda.A motocicleta, sem piloto,
desacelerou ziguezagueando até trombar com uma árvore.
Damião correu até o menino, que conservava as pernas
encolhidas e os braços parcialmente esticados, como se ainda
estivesse sobre a moto.A bolsa a tiracolo estava caída de lado,
sobre as folhas ressecadas. O rapaz desafivelou a bolsa e retirou
dois envelopes pretos idênticos. Os destinatários estavam
subscritos pelo mesmo bico de pena e a caligrafia era
firme e sem floreios.Damião reconheceu o traçado grosso da
pena das harpias e, pelo tom vivo do vermelho das letras, deduziu
que o sangue de algum animal fora colhido recentemente
para abastecer os tinteiros do Malevolato. Virou um
dos envelopes e percebeu o lacre com o brasão dos malévolos
– uma corda escarlate com três voltas distribuídas como
se formassem um trevo, que nada mais era do que uma representação
plástica de três números 6 entrelaçados. Lacre
idêntico fechava o outro envelope. Com um canivete e muita
habilidade, retirou as duas mensagens sem danificar os lacres.
Abriu-as sobre as folhas secas e leu o que estava escrito.
Um forte arrepio percorreu todo seu corpo. Foi preciso muito
controle para segurar uma minúscula câmera que retirou do
bolso, fotografar os textos e,depois, os envelopes com seus destinatários.
Recolocou as cartas nos envelopes e lacrou-os novamente
com perfeição.
Em poucos minutos, o mensageiro estava em cima da
moto, que se equilibrava sobre grosso tronco. A bolsa a tiracolo
com sua fivela fechada guardava as duas mensagens intactas.
Damião certificou-se de que tudo estava em ordem e
retirou o dardo. Imediatamente o pequeno orifício vermelho
no pescoço do menino se fechou. Em três minutos ele recobraria
a consciência e os movimentos.Certamente levaria um
grande susto,mas nunca relataria o estranho acontecimento
aos malévolos por conhecer seus horrendos castigos.Mesmo
atordoado, sem entender o que havia acontecido, acabaria
seguindo o seu caminho.
Agora, Damião refaria o trajeto até alcançar o litoral. Escondido,
aguardaria a hora da maré baixa para não ser surpreendido
pela fúria do Oceano Invisível, que com suas
ondas gigantescas varreriam a costa. O rapaz ainda se lembrava
do rumor crescente das águas que ninguém conseguia
ver,mas que provocava pânico em quem ouvia a sua estrondosa
aproximação. Esperava conseguir atravessar pela base
das dunas negras e, entre tantas outras, reconhecer a única
rocha por onde era possível escapar. Sabia quanto era importante
que as informações em seu poder chegassem às
pessoas certas. Elas precisavam saber.





O ARQUIVO SECRETO




A senhorita D’Antolhos enfrentava o pior momento de
toda sua vida. Havia mais de um mês se arrastava pelos longos
corredores do Superior Instituto Preparatório carregando
o arrependimento pelo único erro que cometera no decorrer
da sua impecável carreira de supervisora do Berçário. Lá, instalada
em sua cadeira, os cotovelos apoiados na grande mesa
em frente, passava em revista, com os olhos cansados, as fileiras
compridas de berços azuis intercaladas com outras
igualmente extensas de berços cor-de-rosa. O Berçário era
isolado por um grosso vidro de cristal que dava a impressão
de uma imensa caixa transparente.Dos quatro lados do vidro
era possível acompanhar o movimento no seu interior. Mas
somente a senhorita D’Antolhos possuía uma visão total do
que se passava não apenas dentro do Berçário,mas também
por trás de toda a extensão do vidro. Para quem observasse o
local de qualquer ponto de fora do escritório, o vidro se transformaria
em uma linda e colorida vegetação, uma ilusão de
óptica criada pelo titular da cadeira de tecnologia, o incrível
inventor, professor Omã.
Mais desanimada do que nunca, passava horas com os
olhos vagando de um berço para o outro, buscando uma
saída para minimizar as consequências inevitáveis de anos
de ocultação de informações importantíssimas. Era verdade
que agira única e exclusivamente por lealdade ao vetérrimo
conselheiro Noel. No entanto, já se imaginava exonerada de
seu cargo, substituída por uma máquina qualquer e, pior,
imortalizada como a grande vilã dos acontecimentos que, em
breve, mobilizariam todo o Superior Instituto Preparatório
para Ascensão Angelical. A morte do vetérrimo a privara não
só de sua inestimável amizade, mas também da cumplicidade
que lhe permitira viver confiante e impune. Sua reputação
seria arrasada, toda a sua vida exemplar ficaria marcada
por um deslize que só servira para lhe atormentar a consciência.
Sentia-se injustiçada, seguira apenas as instruções
do vetérrimo Noel. Afinal, ele não era a autoridade máxima
do Superior Instituto Preparatório? Assoou o nariz vermelho
com seu minúsculo lencinho de renda e ergueu os ombros
tentando recuperar um pouco da postura dos velhos tempos.
Logo depois, desabou sobre a mesa, rendendo-se diante da
tragédia anunciada. A punição estava prestes a bater na sua
porta e, quando seus arquivos fossem examinados, ela arcaria
sozinha com a responsabilidade de todos aqueles gráficos
mantidos em segredo.
Na parede, bem atrás dela, uma foto resistia aos novos
fatos: uma altiva senhorita D’Antolhos posava com seu sorriso
confiante. Mas a realidade ali, em carne e osso, era só
desespero. A aparência impecável sofrera um abalo gritante:
o coque preso no alto da cabeça desabara para o lado direito
e já se desfazia pelo ombro. A camisa branca com gola e punhos
de renda, sempre alvíssima e engomada, era agora uma
ruína de rendas desfeitas e tecido amarfanhado. As meias
pretas estavam furadas em diversos lugares e os sapatos de
verniz, embora ainda brilhantes,mostravam o desligamento
total da dona que calçara um pé marrom e outro preto. A coitada
já nem se olhava no espelho e até renunciara ao uso de
seu camafeu de estimação, presente do vetérrimo Noel, nos
bons tempos em que ela se orgulhava de ser a burocrata número
1 da milenar instituição.
Agora, sentada na sala que tanto prezava, olhava, com
melancolia, os objetos que haviam norteado toda a sua vida.
O relógio de pêndulo, uma versão de mesa, parecia reger
toda atividade em volta com seu vaivém regular.O conjunto
formado pelo tinteiro,mata-borrão e caneta de pena ultrafina
de um dos cisnes brancos que viviam no lago do Bosque das
Hamadríades já quase não era retirado da bandeja de prata
reluzente. A senhorita acariciou a linda pena branca, que lhe
permitia florear a caligrafia de que tanto se orgulhava, sem
engrossar seus traços precisos. Por último, encarou a pilha de
pergaminhos em branco. Um acesso de espirros incontrolável
denunciou o estado de abandono geral: os finos pergaminhos,
com suas delicadas bordas de ouro, começavam a
acumular poeira.
A senhorita vivia em compasso de espera, certa de que o
novo vetérrimo, recém-empossado, estava prestes a convocá-
-la para um balanço da real situação em seus domínios. Cada
dia ficava mais longo do que o outro, mas ela cumpria seu
interminável expediente com o rigor habitual. Não pretendia
abandonar o posto sem uma dispensa oficial: ordem e
pontualidade, essas eram as palavras que pautavam sua vida.
Eram cinco horas e trinta minutos quando a luz vermelha
do h-mail começou a piscar.A senhorita D’Antolhos percorreu
com os olhos o visor do pequeno aparelho em busca do
nome do emissor da mensagem: conselheiro Lucas de Belmonte.
O suor começou a escorrer-lhe pelo rosto antes
mesmo de ela apertar o botão receptor e a imagem holográfica
de apenas vinte centímetros de Lucas aterrissar no meio
da sua mesa com uma convocação curta e objetiva. Ele simplesmente
a informava de que estaria em sua sala às dezenove
horas e gostaria de analisar as fichas dos arquivos
referentes aos últimos meses. Pronto, pensou ela, estava feito:
dali a uma hora e meia ela estaria frita.
A senhorita caminhou até a entrada do Berçário e, endireitando
o rosto e os ombros, resolveu fazer sua última revista
nas inúmeras fileiras de berços. Começou a andar
devagar, reparando em cada detalhe, aprovando a assepsia
do local realizada por imensos filtros sugadores de sujeira
que, sem emitir nenhum som, funcionavam sem parar, em-
butidos em pontos estratégicos do grande salão de vidro.
Tudo estava na mais perfeita ordem, exatamente como sempre
estivera desde que assumira a administração daquela ala
do Preparatório. Ergueu os olhos para, mais uma vez, ler os
dizeres que, em letras de ouro, se agrupavam suspensos no
ar, um recurso mágico para lembrar a natureza especial dos
bebês ali reunidos. Era uma citação textual do capítulo de
abertura do Livro dos Princípios, leitura obrigatória que se
estendia pelas oito séries do Preparatório. Leu e releu aquelas
palavras que traziam aos pequenos alunos da 1ª- série a
compreensão de sua origem fantástica. Apenas os seres humanos
gerados com muito amor e aguardados com carinho
e desprendimento são capazes de, no exato momento da sua
primeira respiração, liberar partículas mágicas, invisíveis a
olho nu pelos terráqueos, mas imediatamente detectadas
pelos anjos-coletores. É função desses anjos o pronto recolhimento
e transporte desses resíduos em suas mantas especiais.
Ao chegar ao Superior Instituto Preparatório, essas
partículas permanecerão depositadas em uma pequena incubadora
por quarenta dias consecutivos, alimentando-se
apenas de luz natural.Transcorrido esse período, um recém-
-nascido se formará e terá a aparência de qualquer bebê humano.
No entanto, em nada mais se assemelhará aos humanos,
pois não é filho de um homem e uma mulher, apenas
um reflexo do amor incondicional de uma mãe, um sentimento
reconhecido como tão especial e único que é capaz de
gerar a essência de um futuro ser de luz.
A senhorita D’Antolhos lembrava-se do intenso movimento
dos anjos-coletores entrando e saindo com suas mantas
e ainda podia sentir os dedos enrijecidos de tantos
registros feitos em poucas horas. Depois, quando o movimento
diminuía, sentava-se para copiar os dados das fichas
nas certidões de pergaminho, momento em que caprichava
nas letras bem desenhadas. Agora, amargurava-se com a
visão dos coletores, alguns já meio barrigudos, cochilando
nas macias poltronas reclináveis de pena de ganso. Ela já os
pilhara na sala de espera, outrora impecavelmente limpa,
cheia de caixas com restos de roscas de leite de cabra, taças
de musse de romã e garrafas de absinto emborcadas na lixeira.
Arrepiou-se com a lembrança das garrafas. Sentira-se
ultrajada ao verificar o rótulo com o emblema do Preparatório
e reconhecer a indicação das melhores safras identificadas
com o selo da maçã dourada, exclusivas da adega dos conselheiros.
Só o vetérrimo Noel possuía a chave da adega,
mesmo assim ela preferiu afastar a desconfiança de que ele
poderia ter presenteado os coletores para compensar o descontentamento
pela ociosidade reinante. Além disso, estava
certa, um grupo de anjos-coletores disputava, no Bosque dos
Carvalhos, um campeonato clandestino do jogo dos onze
aros – o esporte mais popular do Preparatório. Não havia
nada que ela pudesse fazer.
A angústia diante da perspectiva do seu julgamento não
lhe impedia de agir como a funcionária dedicada que sempre
fora. Repensara milhões de vezes os motivos por trás dos berços
vazios e dos anjos-coletores ociosos. É bem verdade que
evitara encarar a explicação mais óbvia, sempre acreditando
que uma solução mágica reverteria o quadro. Agora, graças à
dificuldade em aceitar o que se passava bem diante de seus
olhos, a realidade era aterrorizante e parecia irreversível.Não
adiantava culpar os coletores pela ociosidade reinante. Afinal,
eles não tinham mesmo o que fazer, diante da absurda
escassez da poeira da concepção. Como detectar e colher um
material em extinção? Os seres humanos não faziam ideia
de que o amor de uma mãe pelo seu filho seria capaz de produzir
a essência, a energia vital, dos seres angelicais. Enquanto
as famílias humanas comemoravam a chegada de
mais um ente querido, os coletores abrigavam em suas mantas
a poeira para a concepção de mais um anjo.
Era essa premissa que colocava em perigo o futuro do milenar
Superior Instituto Preparatório para Ascensão Angelical.
Se faltava a matéria-prima para viabilizar a existência dos
bebês, toda aquela complexa estrutura escolar organizada
para a formação dessas crianças se transformaria em um inútil
e grande espaço vazio, habitado apenas por sábios professores.
Tudo culpa dela, lamentava-se a senhorita. E, de
lágrima em lágrima, a infeliz se corroía de remorso cada vez
que era assaltada pela grande incógnita que evitara enfrentar
durante os últimos vinte anos. Ela sabia muito bem o que
significava para o Superior Instituto Preparatório e para os
seres do Bem em geral a curva descendente de recém-nascidos
dentro do seu Berçário. A senhorita D’Antolhos já não
podia sonegar a informação de que dispunha havia muitos
anos e que levava a uma óbvia interpretação: havia uma alarmante
carência de amor entre os humanos.
Dentro de algumas horas seria confrontada e nada poderia
alegar a seu favor. Aceitaria, de bom grado, qualquer punição
e não tentaria fingir que não percebera a implicação
maior de toda aquela situação catastrófica. Sim, ela estava
ciente de que o Mal se alastrara pela Terra como nunca.





REFORMAS NO PREPARATÓRIO




A reitora Anabel de Rochel caminhava em direção à Sala
das Deliberações, na ala mais reservada do Superior Instituto
Preparatório para Ascensão Angelical.Desde que o vetérrimo
conselheiro Noel deixara o Preparatório, nunca mais ela percorrera
aqueles corredores solenes.A estranha impressão de
que o vetérrimo apareceria a qualquer momento, esbravejando
e lhe apontando a bengala com sua mão sempre trêmula,
ia crescendo a cada passo que dava. Sorriu com a
lembrança. O conselheiro tornara-se incrivelmente mais intolerante
e rabugento à medida que os anos passaram. Às
vezes era difícil acreditar que aquela personalidade forte que
governara o instituto durante décadas, sempre comas rédeas
curtas do conservadorismo extremo, transformara-se em semente.
A reitora suspirou, saudosa. Pelo menos sempre restaria
o consolo de saber que aquela semente fora plantada
pelo deslumbrante Pássaro da Semeadura e hoje já era uma
das mais frondosas árvores do Bosque da Sabedoria. Graças
a essa fantástica tradição que acompanhava a trajetória final
de todos os vetérrimos, Anabel podia recorrer aos experientes
conselhos de seu querido Noel, repousando na sombra
de suas reluzentes folhas e deixando os pensamentos fluírem.
Esse era um recurso inestimável para quem, como ela,
convivera com Noel em seus melhores dias. A velhice fizera
estragos irreversíveis no temperamento daquele homem,
que, inegavelmente, fora um dos mais sábios conselheiros a
assumir a posição máxima do Preparatório, justamente o
cargo de vetérrimo.
Agora, ela estava prestes a ter o seu primeiro encontro oficial
como recém-empossado vetérrimo conselheiro Lucas de
Belmonte e estremecia só em imaginar o que vinha pela
frente. Lucas era brilhante,mas excessivamente progressista
para o posto máximo de uma instituição milenar e conservadora
por natureza.Mantivera uma dura oposição nos últimos
anos da gestão do vetérrimo Noel, que, de acordo com as
suspeitas de Anabel, encontrava forças para se manter no
cargo graças à aversão que sentia pelas ideias que Lucas proclamava
em seu jornal independente, A Trombeta. Os dois
eram inimigos declarados e, como tempo, os professores começaram a
definir de que lado estavam.No final, Lucas, com
suas ideias renovadoras, contava com mais adeptos, embora
ninguém ousasse apoiá-lo em público enquanto o conservador
Noel ainda permanecesse no cargo.
Anabel parou em frente à maciça porta de carvalho e estendeu
a mão para pegar a alça de bronze e bater, anunciando
a sua chegada. Mas a alça não estava lá. Sem entender,
passou os olhos pela imensa porta dupla e, junto ao
portal lateral da direita, encontrou uma campainha eletrônica
e, mais acima, uma câmara de vigilância externa. Ficou
horrorizada ao imaginar as mudanças que encontraria na antiga
sala que, com seus móveis seculares e sólidos, personificava
a tradição e a seriedade do lugar.
Tocou a campainha, e logo um controle eletrônico abriu a
porta.Anabel engoliu em seco, ainda se lembrando do barulho
da pesada chave de bronze que costumava anunciar a
abertura da Sala das Deliberações. Entrou, os olhos baixos,
com medo de encarar a nova sala.Mas uma surpresa a aguardava:
tudo continuava rigorosamente igual.Até a bengala do
vetérrimo Noel estava em pé, apoiada na lateral da cadeira de
espaldar alto em que ele costumava se sentar, na cabeceira
da gigantesca mesa do Conselho.O mais estranho era que a
sala estava vazia. A reitora olhou ao redor, intrigada. O som
do velho carrilhão fez com que ela se voltasse para o fundo
da sala e aguardasse as seis badaladas. Não havia engano, o
cartão que o mensageiro lhe entregara aquela manhã convidava-
a para uma reunião exatamente às seis horas da tarde.
Afinal, onde estava Lucas de Belmonte?
Anabel já se preparava para sair, quando um barulho de
móvel sendo arrastado fez com que retornasse. Espantada,
observou a parede da estante que cobria a maior parte do
lado direito da salamover-se lentamente deslocando com firmeza
aquele mundo de sabedoria ricamente encadernado.A
operação revelou um novo espaço, uma abertura de cerca de
dois metros, de onde uma porta de correr também se abriu
com um ágil toque eletrônico, contrastando com o arrastar
reverente da pesada estante. O conselheiro Lucas entrou,
descontraído, de braços abertos, para acolher Anabel:
– Finalmente conseguimos nos encontrar, nem parece que
ainda vivemos no mesmo lugar – Lucas comentou, envolvendo
a reitora num afetuoso abraço. – Há quanto tempo não
nos vemos? Três… quatro meses?
– Cinco meses, desde a sua posse.
– Tanto assim? Confesso que estou perdendo a noção do
tempo. Sabe,Anabel, tenho trabalhado tanto no plano de reformas
para o nosso Preparatório, que já aconteceu de algumas
vezes eu emendar até setenta e duas horas sem dormir.
Anabel, olhando para a fisionomia abatida de Lucas, apesar
da jovialidade do rabo de cavalo e dos brincos de corda de
harpa que sempre usara, percebia as olheiras proeminentes
insinuando-se abaixo dos pequenos óculos de meia-lua.
Mesmo assim, não podia deixar de admitir que o brilho nos
olhos permanecia inalterado, indicando a vivacidade e a paixão
de sempre. O conselheiro, com um gesto convidativo,
conduziu sua velha amiga até a sala anexa, antes encoberta
por parte da monumental estante. Só quando já estava para
dar o primeiro passo dentro do novo ambiente, ela registrou
a espantosa mudança arquitetônica produzida no centro do
poder administrativo do Superior Instituto Preparatório.Não
pôde evitar o choque, dobrando ligeiramente os joelhos e
precisando do apoio do braço prestimoso do controverso
amigo. Lucas, defensor incansável das próprias ideias, não
perdeu o entusiasmo:
– Não é agradável? Sente-se aqui nessa poltrona confortável
que eu vou pegar uma bebida.Quero que você fique inteiramente
à vontade.
Anabel sentou-se na beira da larga poltrona, sem conseguir
perceber a maciez convidativa do estofamento, bem de
acordo com a praticidade e o conforto de todo o ambiente.
Nada ali se parecia com qualquer outro local dentro dos
muros do Preparatório.Atordoada, reparou no teto rebaixado
que reduzia a altura do escritório a apenas 1/3 do pé-direito
convencional das construções em volta. No fundo, a sala se
estreitava um pouco, formando um outro ambiente, onde se
via uma enorme tela de plasma na parede principal. Abaixo
dela, uma estante repleta de caixas fininhas catalogadas.
Lucas, com duas xícaras na mão, atraiu o olhar interrogativo
de Anabel.
– Muitas inovações, não é mesmo? – indagou o conselheiro,
estendendo-lhe a mão com uma das xícaras.
A reitora recebeu a xícara,mas hesitou em provar o líquido
fumegante. Lucas sorriu, compreensivo:
– Não pretendo mudar nada que esteja correto. Essa xícara,
por exemplo, não contém nada além do nosso saboroso
e confiável chá de pétalas de papoula. Pode beber sem medo,
está delicioso.
Anabel bebeu um gole, tentando relaxar. Seus olhos se
desviaram novamente para o local da tela. Lucas levantou-
-se e iluminou o fundo da sala para que sua convidada pudesse
ter uma visão melhor.
– Não é nenhuma invenção do nosso querido professor
Omã. Reservei aquele canto para acomodar toda a tecnologia
de ponta de que preciso para me manter informado sobre
os mais diversos assuntos.
– Assuntos relacionados com a vida dos seres simples?
– Eu sempre achei o termo “simples”meio preconceituoso.
É claro que os humanos são seres espiritualmente simples,
mas quem utiliza a tecnologia que eles são capazes de criar
tem de admitir que são bem evoluídos em certos aspectos.
– Aspectos materiais, conselheiro.
– Sem dúvida…mas que impressiona, lá isso impressiona.
– Seria indiscrição perguntar como tudo isso chegou até
aqui?
– Infelizmente, Anabel, não é hora de tratarmos de amenidades.
Não foi para começarmos uma briga em torno das
nossas pequenas diferenças que convoquei esta reunião. Na
verdade, temos um assunto extremamente sério a tratar.
Lucas foi até a sua ampla mesa de vidro e pegou uma antiga
chave de bronze de dentro de um saquinho de seda vermelha
com o emblema do Preparatório bordado dos dois
lados. Levantou a mão com a chave pendurada no indicador.
Um chaveiro de cristal, representando um par de asas, ficou
balançando no ar, cintilante:
– Sabe de onde é essa chave?
– Do Berçário. Fui chefe do Berçário, esqueceu?
– Eu me lembro perfeitamente. Por isso mesmo acho que
devo preveni-la de que nosso assunto é bastante complexo e
desagradável. Para quem foi responsável pelo Berçário em
outros tempos, vai ser difícil visitá-lo hoje.Mas é inevitável.
– Nós vamos ao Berçário agora?
–Vamos sim. Essa visita é necessária para você sentir por
que eu anseio tanto por reformas.Quero que você seja minha
aliada nos tempos difíceis que temos pela frente.
– E eu vou entender tudo indo até lá? – Anabel perguntou,
levantando-se, incrédula.
– Eu garanto.
O conselheiro Lucas de Belmonte segurou no braço da
amiga, que, indecisa, foi se deixando levar para fora da sala.
Novamente a estante começou a se deslocar pesadamente,
dessa vez para encobrir o moderno escritório. Enquanto cruzavam
a Sala das Deliberações, Anabel percebeu, pela pri-
meira vez naquele encontro, o peso da preocupação substituir
o incansável entusiasmo do conselheiro.

Às sete horas em ponto, o conselheiro Lucas, acompanhado
da reitora Anabel, aguardava a abertura da sala do arquivo,
depois de sucessivas batidas na porta. O silêncio era
total. O conselheiro, retirando a chave do bolso, consultou a
reitora:
– Não acha que já é hora de usarmos a minha chave?
– Estranho…Ela nunca abandona o posto.
Lucas girou a chave na fechadura e eles entraram, empurrando
a porta devagar. Tudo parecia na mais perfeita
ordem, exceto pela ausência da senhorita D’Antolhos. Lucas
logo percebeu um envelope endereçado a ele bem no centro
da mesa. Abriu-o, desdobrou o papel de cartas com o símbolo
do Preparatório e leu, com crescente espanto, a carta assinada
pela senhorita D’Antolhos. Ao terminar a leitura,
continuou com o papel na mão, absolutamente perplexo.
Anabel, tensa, adiantou-se:
– Por favor, Lucas, fale comigo. O que está acontecendo
aqui?
O conselheiro sentou-se na cadeira da senhorita e respirou
fundo, tentando se controlar:
– Ela estava manipulando os dados a pedido do vetérrimo
Noel.Nos últimos vinte anos, o berçário vem apresentando
uma queda vertiginosa no número de recém-nascidos
coletados. Eu sabia… Eu sempre soube… – indignou-se
Lucas. – O vetérrimo Noel não queria aceitar as mudanças
nas nossas regras, por isso fingia que tudo estava bem. Que
irresponsável!
– Ele estava com demência senil, Lucas.Nós vimos o coitado
do Noel ficar cada dia mais ausente até entrar no Quarto
da Transformação. Ele já não era responsável pelas suas
atitudes.
– É por isso mesmo que deveria ter sido interditado.
Entende, agora, Anabel, por que precisamos de reformas
urgentes?
Anabel limitou-se a baixar os olhos diante da evidência.
Ainda sentia pena do triste fim de Noel.Mas precisava aceitar
a verdade escancarada na sua frente: os vetérrimos só podiam
governar enquanto mantivessem a lucidez absoluta.
Como desde que assumiam o cargo não envelheciam fisicamente,
davam a ilusão de parecerem sempre iguais. Mas
o cérebro se degenerava como o de qualquer mortal. Era
comum os vetérrimos terminarem seus dias em total confusão
mental, mas nunca acontecera de se manterem ativos,
deliberando de forma a prejudicar a instituição.O vetérrimo
Noel, com seu gênio forte, mantivera a rédea firme em suas
mãos. As consequências começavam a aparecer.
– Ela deixou o arquivo aberto para eu poder avaliar os
fatos.Mas, antes de arregaçar as mangas, preciso mandar um
h-mail para a enfermaria, alguém precisa tentar interceptar
essa louca antes que ela alcance a Coluna dos Proscritos.
– Ela disse que iria para lá?
– Disse. E, como você sabe, se ela colocar os pés naquele
terreno, estará condenada a ficar lá para sempre.
– Coitada, ela idolatrava o vetérrimo Noel; não tem culpa
do que fez.
– Mas está feito, Anabel.
– E você acha que a situação é tão terrível quanto parece?
Lucas não respondeu. Enviou o h-mail para a enfermaria
e retirou a última gaveta do arquivo para conferir os dados
mais recentes.A cada ficha que olhava ficava mais atordoado
e infeliz. Quando pegou a última, referente ao dia anterior,
deixou todas as outras escorregarem para o chão, tamanho o
susto que levou. Depois, deixando a ficha de lado, levantou-
-se, decidido:
–Vou até a sala dos anjos-coletores. Feche o arquivo e vá
para seu apartamento. Eu mando um h-mail assim que conseguir
raciocinar direito.
Anabel recolheu as fichas espalhadas pelo chão. Depois,
pegou a última, em cima da mesa.Verificou que era relativa ao
dia anterior e apressou-se em checar o número de nascimentos.
Ainda se lembrava de que, na sua época de supervisora do
Berçário, havia dias em que mais de mil coletas eram realizadas.
Ao localizar a coluna dos nascimentos, não conseguiu
conter um grito. No alto da coluna, na linha que contabilizava
o número de entradas no Berçário, estava a informação desconcertante:
a letra caprichada da senhorita D’Antolhos registrava,
por extenso, um impecável e floreado ZERO.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009